sexta-feira, 14 de outubro de 2011

CORRIDA E ALEGRIA DA VIDA, MINHA RIMA PREFERIDA

Memórias da 9ª Corrida Troféu Duque de Caxias – Hospital A. C. Camargo, 21 de agosto de 2011.

Meu caro professor Alexandre de Andrade, peço-lhe desculpas. Parei várias vezes na corrida de hoje. Espero que entenda a sua aluna – esta, que jura estar à procura da vergonha na cara, para voltar a correr mais seriamente, tentar reconquistar os 10 km abaixo de uma hora... Sim, estou tentando, de verdade, mas hoje, mais uma vez, não deu. Vou tentar me justificar.
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A previsão do tempo acertou. Choveu no sábado e esfriou muito. Domingo fazia 9º C quando saí de casa rumo ao Ibirapuera, com vento e garoa como agravantes. Veio a calhar a camiseta oficial da corrida, verde vivo, grife conceituada, e o melhor de tudo, manga longa.
Bem... mas antes da marca do primeiro quilômetro eu já amaldiçoava a bendita manga comprida – sentia muito calor, apesar dos termômetros ali mostrarem 11º C.  A boca secava, a coxa esquerda rangia, o glúteo direito repuxava, a perna doía... Que droga ter 53 anos de idade, que droga ter engordado tanto! Me perguntava o que estava fazendo ali. Ah, sim, estava ali para tentar fazer os 10 km em menos de 1hora e 10 minutos, para quem sabe, até o fim do ano, desafiar uma abaixo de 1 hora.
Eis que, de repente, me chama a atenção um pescoço que ia correndo na minha frente. Um parêntesis: com os meus 1,48m, mesmo correndo conforme conselhos profissionais – corpo ereto, peito estufado, cabeça levantada –, é normal eu enxergar dos que vão adiante as costas, eventualmente a cintura, e na melhor das hipóteses, o pescoço. Aliás, o pescoço me atrai automaticamente, cirurgiã de cabeça e pescoço que sou. Voltando ao pescoço que ia indo à minha frente, além do cabelo quase totalmente branco que o encimava, observei nele algo que só cirurgiões de cabeça e pescoço e outros poucos reconheceriam: um protetor de traqueostomia *. Azul clarinho, daqueles com velcro atrás. Aliás, daqueles que só laringectomizado** usa. Não, não é possível. Veja bem, Sunao, vamos recapitular. Você está numa corrida, na manhã muito fria de um domingo. Com vento gelado e garoa. Sim, tenho certeza: estou no começo de uma corrida. Corrida de rua, de 10 km!! Como assim, um laringectomizado aqui?????
Corri mais rapidinho e olhei de esguelha. Inconfundível perfil de laringectomizado! Aquele pescoço que fica parecendo que só tem a metade de trás, porque a outra metade o cirurgião arrancou (supostamente, para tirar um câncer). Sim, um laringectomizado. Correndo! Fiquei emocionada, feliz, pensativa, intrigada, pra variar quase chorei, mas passei reto, com a certeza de ter sido hiperdiscreta. Mas logo depois, não aguentei. Olhei para trás, dane-se a discrição. Lá vinha o senhorzinho, não muito mais alto do que eu, cabelos e sobrancelhas quase brancos, óculos escuros, joelheira numa das pernas – e que pernas! Musculosas, de corredor de verdade! Não combinava, ali, apenas o babadorzinho azul da traqueostomia...

Deixei o senhorzinho me ultrapassar só um pouco e então, cara de pau assumida, abordei-lhe a lateral esquerda, saudando-o com o “Bom dia” mais simpático que consegui pronunciar. Apresentei-me como cirurgiã de cabeça e pescoço e disse-lhe que gostaria de usar o seu exemplo para incentivar meus pacientes. Ele fez que sim, sorrindo, surpresa estampada no rosto de um senhor distinto, mais pra vovô carinhoso. Fui um pouco adiante, perdi mais um pouco da minha discrição e tirei uma foto dele. E continuei no meu ritmo (não muito mais forte do que o dele), deixando-o para trás. Eu ainda queria fazer meus 10 km em 01:10.


Seguindo mais um pouco, achei um ótimo lugar para fazer mais fotos. Subi na mureta do canteiro central e fiquei trotando em círculo. Fiquei observando a expressão de cada corredor que passava, enquanto o Ipod tocava o primeiro movimento da fenomenal Nona de Beethoven. Um jovem meio gordinho, meio ofegante – vamos lá, ainda falta muito, moço! Um homem grisalho com aparência de gente muito séria. Chutaria que é um empresário e não saberia dizer se ele pensava nos problemas da empresa ou se estava apenas concentradíssimo no seu ritmo. Várias mulheres, de várias idades, várias vaidades – ainda em bom estado, pois a corrida estava no começo. Fiquei imaginando o que cada um teria usado como motivação para estar ali naquele frio.
Nessa hora, entrou no meu campo visual um cadeirante, impulsionando o seu veículo com (me pareceu, pelo menos) muito, muito esforço. Era uma cadeira de rodas normal, não aqueles bólidos que a gente vê nas paraolimpíadas. Faltava-lhe a perna direita. Pois é,... a mesma que, em mim, doía. Passei o Beethoven para o quarto movimento: Ode à Alegria. Combinava com tudo aquilo: a alegria de viver, certamente o motivo pelo qual todos estávamos ali – sem a laringe, sem a perna, ou com a laringe perfeita e a perna doendo... e sem vergonha nenhuma na cara.

O senhorzinho passou por mim; fotografei e segui atrás. Fotografei de novo. Ia ele, babadorzinho azul balançando ao vento, passos firmes, em meio a todo aquele povo aparentemente mais jovem e mais “normal” do que ele.
Eu já estava satisfeita de ter registrado na memória e no meu celular momentos tão especiais de uma corrida. Acelerei. Quem sabe, ainda dava tempo de buscar a minha 1 hora e 10 minutos?
Mais ou menos no quinto quilômetro, ultrapassei uma camiseta amarela, escrito bem grande nas costas: CEGO. A dona da camiseta era uma jovem muito bonita, corpo perfeito, cabelos longos em rabo de cavalo, postura elegantíssima. Se não fosse a guia amarrada a ela por uma cordinha e aquele rótulo enorme nas costas, jamais diria que ela não enxergava. Cobrei de Deus – indevidamente, eu sei: puxa vida, porque uma moça tão bonita não tem o direito de se enxergar? E eu que, por enxergar bem, vivo brigando com o espelho e com a balança... Bem, ainda assim, ela parecia feliz correndo, como eu. Como contar a ela que a camiseta amarela molhada de suor era tão linda quanto o ipê amarelo à beira do percurso, também molhado com a garoa da manhã?
Alguns metros mais, e outra camiseta amarela. De novo: CEGO. Um corredor baixinho, abaixo da média masculina. Ao lado, ligado por aquela cordinha, um corredor bem alto – acima da média – e aparentemente bem mais jovem. Mais “atlético”, digamos. A diferença de altura era gritante, e, unidos por uma corda bem curtinha, o rapaz mais alto parecia até meio envergado para acertar a altura de sua mão com a do outro. Muito provavelmente, aquele não era seu melhor ritmo. Poderia estar bem mais adiante, correndo livre, voando, tentando baixar seu tempo, satisfazendo seu ego. Mas ele estava lá, num ritmo tranquilo, guiando o corredor cego. Meu Ipod no modo random, tinha pulado de Beethoven para Elton John: “You’re butterfly/and butterflies are free to fly/Fly away,high away”Pensei, cada um tem seu jeito de ser free to fly!
Estava começando a terrível subida da Rubem Berta. Adoro subida, e, apesar de fora de forma, me animei. Ainda absorta na música, absorta na alegria de viver, acelerei novamente em busca do meu tempo. Quase no final da subida, vejo um termômetro enorme registrando absurdos 8ºC! Caraca, sabia que estava frio, mas não pensei que fosse tanto!
Foi aí que a minha proposta de fazer os 10 km em... quanto tempo era mesmo?... foi embora de vez. Foda-se o tempo, eu tenho coisa mais importante para aprender e curtir. Eu preciso – sim, PRECISO! fotografar o senhorzinho laringectomizado ao lado deste termômetro! Aliás, é uma foto dessas, feito painel bem grandão, que preciso pendurar em frente à minha cama. Para enxergar, mesmo sonolenta e sem óculos, toda vez que der vontade de não sair do edredon, seja lá para ir correr ou trabalhar. E, na hora que a vergonha chegar e conseguir me levantar, me colocar de joelhos à frente da foto e agradecer a Deus por tudo, sim, absolutamente TUDO!
Encostei no canteiro central e fiquei trotando no lugar, para esperar o senhorzinho enquanto observava, novamente, a expressão dos corredores. Por ser final de uma longa subida, a atitude dos corredores era bem mais variada do que lá no começo. Alguns sorriam vitoriosos mesmo ofegantes, outros vinham derrotados, caminhando cabisbaixos (eu tinha vontade de lembra-los de que já era uma grande vitória estarmos ali, a 8º C), outros vinham batendo papo e rindo, como se estivessem passeando (que inveja!). Vi, também, as duas camisetas amarelas passando, acompanhadas pelos respectivos guias. Será que a subida é menos pior quando não se enxerga? De certo, o senhorzinho laringectomizado chegaria muito bem, sabendo controlar o ritmo, a força, a respiração, a empolgação. Tantas outras subidas e descidas da vida que ele já deve ter vencido!
Fiquei divagando, me lembrando de alguns pacientes meus, dos sofrimentos e superações de cada um, os Rubem-Bertas da vida de cada um... E eis que, putz, deixei o senhorzinho escapar! Quando me dei conta, ele já passava por mim, sorrindo e fazendo tchauzinho. Droga, perdi uma foto planejada, aliás, A FOTO do meu painel! Não há verdade maior em fotografia de esporte, do que “Fotografou? Não? Então, dançou!”... Mas vislumbrei uma outra verdade que me deixou radiante: acho que Deus quer me presentear um amigo!
Foto perdida, foto esquecida. Tenta-se manter a cena gravada na memória, e pronto. Mas ali, nem era caso tão perdido assim. Ainda havia a volta, pelo outro lado da avenida, com o mesmo termômetro. Então, tive de me apressar de novo. Desta vez, não mais para ir atrás da minha hora e dez minutos, mas para me posicionar estrategicamente junto do termômetro na outra mão da avenida.
Não consegui fazer “a foto ideal” porque o senhorzinho vinha correndo na outra ponta da avenida, longe do termômetro, mas ainda assim consegui incluir no mesmo enquadramento o senhorzinho e os 8ºC. De qualquer forma, já imaginei a foto bem ampliada, em frente à minha cama, gritando todas as manhãs para mim, “Sunao, cria vergonha nessa cara!” Hahaha, vai ser o máximo!

Nessa altura, a cara de pau já dominava totalmente a minha existência encharcada de suor. Imaginava abraçar aquela criatura tão especial depois da linha de chegada e tentar demonstrar o quanto eu estava grata por aquele exemplo. Exemplo de – palavra batida e até meio banalizada – superação. Mais do que isso, um exemplo vivo da alegria de viver.
Eu queria ver de perto o senhorzinho cruzando a linha de chegada. E fotografar, claro. Então, acelerei pela última vez nos poucos quilômetros restantes, para me armar com o meu celular (droga, cadê a minha Nikon?) e toda a atenção do mundo, logo depois do pórtico de chegada. Em geral, a organização da corrida não permite que quem terminou a prova fique zanzando próximo ao pórtico de chegada, para evitar tumulto dos corredores que vem chegando. Mas ali já estava tranquilo, com a chegada mais espaçada dos atletas. E então arrisquei, berrando para um dos rapazes do staff: “Dá licença, moço! Eu preciso, você entende? Eu PRE-CI-SO!!!! fotografar a chegada de uma pessoa muito, muuuuuito especial!”. Fui convincente. Ele me disse que não havia problema, se eu não atrapalhasse o pessoal que estava chegando.
Deu certo. Assisti de frente o senhorzinho cruzando a linha de chegada! De braços abertos, mordendo a ponta de seu babadorzinho azul. Um vencedor chegando! Aliás, quantas vezes já não terá vencido na corrida da vida, nos anos que, pelo que imagino pela cor de seus cabelos, não devem ser pouca coisa...


Corri ao seu encontro, saboreando uma das emoções mais gostosas que já experimentei. A indescritível e indiscutível alegria de viver, resumida em dez quilômetros de corrida, uma hora e pouco de vida (me desculpe, Professor Alexandre, foi um pouco mais do que 01:10...). Nunca foi tão verdadeiro: corrida e alegria da vida, minha rima preferida.
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*/** Para quem pensa que essas duas palavras são palavrões: laringectomia é a retirada cirúrgica da laringe, parte da garganta onde estão localizadas as pregas (cordas) vocais. Em geral, a doença que leva à necessidade desse tipo de cirurgia é o câncer. Sem a laringe, perde-se a continuidade da boca e nariz com a traqueia e a respiração é feita diretamente pela traqueia, que fica com uma abertura na parte baixa do pescoço – a traqueostomia. A alimentação permanece normal e a fala pode ser reabilitada por meio de uma pequena prótese inserida entre a traqueia e o esôfago.


Sr. Coryntho, "o senhorzinho". Corredor desde 1997, laringectomizado em 2007, vencedor sempre.


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